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3169E6, Era de Sombrata. Dia 18 de Fevereiro.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Das Cartas de Jacob



Um dia refrescante


Acordei com o calor suave do sol entre as cortinas do quarto. Olhei para o meu corpo e vi algumas ataduras, ervas medicinais e umas roupas que eu não conhecia a origem. A última coisa que eu me lembro era a tempestade e uma gigantesca onda engolindo o convés do navio
          Em meio a tropeços e com certa dificuldade consegui me levantar, um dos meus braços estava completamente enfaixado e com uma tala, se acabasse me metendo em alguma confusão iria apenas dispor da mão esquerda.
          Assim que me aproximei da porta, escutei um som vindo do andar abaixo, abri ela lentamente e com passos leves me esgueirei pelo corredor, chegando perto da escada percebi que era uma música, Amor distante. Eu tinha familiaridade com algumas canções graças aos ensinos da Betty, uma barda que era parte da nossa tripulação no navio Asas do Oceano.
          Diferente do que muitos tem na cabeça, Amor distante não é sobre uma história triste, mas sim sobre a vontade que uma mulher tinha em trazer de volta a vida o seu falecido que havia sido levado pelo mar.
A melodia era encantadora e hipnotizante, sem perceber andei até o andar em que a música estava sendo tocada. Este foi o nosso primeiro encontro.
          Lá estava ela, dedilhando sua harpa com a mesma maestria que um alquimista em seu laboratório, sua voz era doce e encantadora, seus olhos âmbares e mais vastos que o oceano, uma pele lilás e brilhante, no topo de sua cabeça um par de chifres pequenos.
Seria irônico dizer que sua apresentação era divina, já que ela era claramente uma tiefling, lembro que quando pensei isso eu esbocei um leve sorriso e fiquei lá imóvel observando a jovem, parecia ser um pouco mais velha do que eu, talvez ela tivesse uns dezoito ou dezessete anos?
Me lembrei de um ditado que uma vez escutei; meninos espicham e mulheres amadurecem.
          - Gostou do espetáculo?
Meu transe foi quebrado pela pergunta, não sei quanto tempo passei ali vendo a garota, mas esqueci de fechar a boca e agora ela estava seca.
          - É claro - respondi ajeitando a minha postura e me escorando na parede próxima - Eu vi que estava tocando sozinha e não queria atrapalhar.
          Ela deu um leve sorriso, se virou para a harpa e começou a arrumar as suas coisas, notei que o estojo era feito de um couro mais pobre e remendado, mas isso não roubava o seu charme.
          Era admirável a forma como ela tratava o seu instrumento, parecia uma mãe segurando o seu bebê.
          - Como está seu corpo? - perguntou a garota ainda de costas arrumando a harpa.
          - Eu estou bem, mas que lugar é...
          - Nibiru - respondeu me interrompendo -, estava voltando do mercado com algumas coisas e quando olhei para a praia, lá estava você atirado no meio da areia e bastante machucado por sinal.
          - Acho que devo te agradecer pela...
          - São cinco moedas de prata pelos remédios, hospedagem e mais uma pela performance particular - comentou ela enquanto fazia os cálculos com seus longos e finos dedos.
          - Como pode ver eu não tenho dinheiro algum! - retruquei colocando as mãos em meus bolsos e os puxando para fora.
          Ela se levantou e andou até o balcão do bar, guardou seu estojo com a harpa em algum lugar, pegou dois copos e uma garrafa com um líquido amarelo.
          - Por conta da casa - disse ela com um sorriso perverso.
          Me sentei no bar lentamente e tentei cruzar as pernas, mas eu ainda estava dolorido e a princípio o efeito das ervas para dor havia passado. Me concentrei para não esboçar dor alguma, mas escutei um riso vindo dela, provavelmente eu fiz alguma careta de dor enquanto sentava.
          - Eu me chamo Josephine Ebonhart. - comentou enquanto servia os dois copos.
          - Sou Jacob Silverhawk, futuro capitão da maior embarcação que essa terra sem deuses irá ver - respondi em um ar confiante e dei um longo gole na bebida.
          - Ora, ora, então senhor Jacob, o que um pirata como você faz perdido na praia? - indagou Josephine enquanto me olhava com um ar curioso.
          Congelei por alguns instantes, se ela sabia que eu era um pirata, poderia facilmente me entregar para a guarda e lucrar mais do que as moedas que eu estaria devendo. Instintivamente olhei para o meu braço que estava todo enfaixado, é claro que ela saberia, afinal cuidou do meu corpo enquanto estava desmaiado e deve ter visto a marca que os piratas recebem quando são capturados.
          - Bem... - falei com a voz rouca - a tripulação da qual faço parte estava transportando uma mercadoria, mas ao que tudo indica minha corda não estava bem amarrada e fui jogado do navio durante a tempestade.
          - Como é lá fora? - perguntou ela com um olhar curioso, se debruçou sobre bar e inclinou seu corpo para perto do meu rosto, se fosse mais alguns centímetros eu conseguia sentir sua respiração, fiquei uns bons segundos perdido fitando seus olhos antes de responder.
           Senti meu rosto esquentar, juntei um pouco de ar e respondi.
          - É fascinante o sentimento de liberdade, viajar por todos os lugares e sentir a brisa do oceano - falei enquanto recordava algumas boas memórias.
          - Mas, vocês não pilham, saqueiam e fazem todas essas coisas ruins? - ela saiu de trás do bar e veio na minha direção sentando no banco que estava do meu lado.
          Olhando com mais clareza notei que tínhamos a mesma altura, e não havia percebido antes, mas Josephine também tem uma cauda que, por sinal estava segurando o seu copo de cerveja.
          - O nosso capitão deixou extremamente claro que devemos apenas saquear pessoas ruins - esclareci depois de dar mais um gole na bebida.
          - Pensei que você fosse o capitão, senhor Jake - disse ela com um ar travesso.
          - Estou trabalhando para isso, mas um dia eu irei ter a minha própria tripulação e você escutará histórias sobre Jacob, o Lorde dos Mares - respondi com um ar confiante e pomposo.
          - Porém, ao que tudo indica - deu um breve gole na bebida -, agora você não passa de um pequeno meio elfo com cabelos prateados e sem dinheiro - disse Josephine enquanto apontava para os meus bolsos.
          - Veja Josie - me ajeitei na cadeira e comecei a gesticular - talvez possamos resolver isso de outro jeito, assim ambos saímos ganhando e você não precisa me entregar para a guarda costeira.
          Ela colocou a mão no rosto e pensou por alguns segundos, minha garganta estava seca e eu não podia deixar minha ansiedade transparecer. Uma onzena atrás eu estava em uma prisão e não queria voltar de jeito nenhum, peguei o copo e bebi enquanto fitava Josephine.
          - Esses dois anéis que estão no seu colar parecem valiosos, se me dar os dois eu não falarei nada - disse ela enquanto apontava para o meu pescoço.
Aqueles anéis eram a única coisa que eu tinha desde que me lembro, quando fui encontrado ainda criança eles estavam comigo, talvez fossem dos meus pais ou de um outro ente querido.
Um dos membros da tripulação, Robert, é um especialista em joias e ele sempre analisava os tesouros para que fosse dividido por igual. Aos seus olhos, eles não tinham um grande valor, mas para mim era algo sentimental.
          - Apenas um - respondi firme, levantei e fiquei de frente para ela -, veja bem, eu não tenho nenhuma certeza que você não vai me entregar quando eu passar pela porta e estiver fora da sua vista.
          - Escute - tirei um dos anéis e coloquei na mesa -, você fica com este como garantia e quando eu encontrar o meu grupo, volto e lhe dou uma caixa de joias. Assim eu tenho minhas coisas de volta e você mais dinheiro do que poderia pensar.
          Josephine ponderou por alguns minutos e assentiu com a cabeça. Terminamos a garrafa de bebida e ela pegou outra, conversamos por longas horas e descobri que aquela hospedaria era onde trabalhava entregando bebidas e durante a noite fazia apresentações musicais.
Alguns dias se passaram e nos tornamos mais próximos, ensinei Josie a bater carteira de pessoas avoadas e ela tentou me ensinar a dançar, claramente sem êxito, içar velas e limpar o convés soava anos luz mais fácil do que isso.
          Josephine tentou me devolver o anel e afirmava que confiava na minha palavra, mas neguei e disse para manter ele.
          Sempre que andávamos pela cidade eu tinha vontade de dizer para ela que era a coisa mais linda que eu vi em anos. Diversas vezes durante os dias eu pensei em convidá-la para ir embora comigo, mas era arriscado e eu não tinha garantia nenhuma de que conseguiria mantê-la segura, afinal eu já havia sido preso diversas vezes e perdi as contas do quanto apanhei feito um cachorro.
Não posso mentir de que a ideia de abandonar tudo e viver uma vida tranquila na cidade portuária não passou pela minha cabeça, mas me mantive firme, eu tracei um objetivo e não poderia abrir mão dele. Resolvi então que iria aproveitar ao máximo o tempo que eu tinha.
          E essa foi a primeira semana com Josie, de um mês que parece ter passado rápido demais. No fim eu parti sem me despedir e deixando para trás um saco de moedas que juntei durante a minha estadia. No meu pescoço? Um único anel.
          Lembro de quando conheci ela, fazia sol e havia um vento refrescante que eu jamais irei me esquecer.

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