Um dia refrescante
Acordei com o calor suave do sol entre as cortinas do
quarto. Olhei para o meu corpo e vi algumas ataduras, ervas medicinais e umas
roupas que eu não conhecia a origem. A última coisa que eu me lembro era a
tempestade e uma gigantesca onda engolindo o convés do navio
Em meio a tropeços e com certa
dificuldade consegui me levantar, um dos meus braços estava completamente
enfaixado e com uma tala, se acabasse me metendo em alguma confusão iria apenas
dispor da mão esquerda.
Assim que me aproximei da porta,
escutei um som vindo do andar abaixo, abri ela lentamente e com passos leves me
esgueirei pelo corredor, chegando perto da escada percebi que era uma música, Amor distante. Eu tinha familiaridade
com algumas canções graças aos ensinos da Betty, uma barda que era parte da
nossa tripulação no navio Asas do Oceano.
Diferente do que muitos tem na
cabeça, Amor distante não é sobre uma
história triste, mas sim sobre a vontade que uma mulher tinha em trazer de
volta a vida o seu falecido que havia sido levado pelo mar.
A melodia era encantadora e
hipnotizante, sem perceber andei até o andar em que a música estava sendo
tocada. Este foi o nosso primeiro encontro.
Lá estava ela, dedilhando sua harpa
com a mesma maestria que um alquimista em seu laboratório, sua voz era doce e
encantadora, seus olhos âmbares e mais vastos que o oceano, uma pele lilás e
brilhante, no topo de sua cabeça um par de chifres pequenos.
Seria irônico dizer que sua apresentação
era divina, já que ela era claramente uma tiefling, lembro que quando pensei
isso eu esbocei um leve sorriso e fiquei lá imóvel observando a jovem, parecia
ser um pouco mais velha do que eu, talvez ela tivesse uns dezoito ou dezessete
anos?
Me lembrei de um ditado que uma vez
escutei; meninos espicham e mulheres
amadurecem.
- Gostou do espetáculo?
Meu transe foi quebrado pela pergunta,
não sei quanto tempo passei ali vendo a garota, mas esqueci de fechar a boca e
agora ela estava seca.
- É claro - respondi ajeitando
a minha postura e me escorando na parede próxima - Eu vi que estava tocando
sozinha e não queria atrapalhar.
Ela deu um leve sorriso, se virou
para a harpa e começou a arrumar as suas coisas, notei que o estojo era feito
de um couro mais pobre e remendado, mas isso não roubava o seu charme.
Era admirável a forma como ela
tratava o seu instrumento, parecia uma mãe segurando o seu bebê.
- Como está seu corpo? - perguntou a
garota ainda de costas arrumando a harpa.
- Eu estou bem, mas que lugar é...
- Nibiru - respondeu me interrompendo
-, estava voltando do mercado com algumas coisas e quando olhei para a praia,
lá estava você atirado no meio da areia e bastante machucado por sinal.
- Acho que devo te agradecer pela...
- São cinco moedas de prata pelos
remédios, hospedagem e mais uma pela performance particular - comentou ela
enquanto fazia os cálculos com seus longos e finos dedos.
- Como pode ver eu não tenho dinheiro
algum! - retruquei colocando as mãos em meus bolsos e os puxando para fora.
Ela se levantou e andou até o balcão
do bar, guardou seu estojo com a harpa em algum lugar, pegou dois copos e uma
garrafa com um líquido amarelo.
- Por conta da casa - disse ela com
um sorriso perverso.
Me sentei no bar lentamente e tentei
cruzar as pernas, mas eu ainda estava dolorido e a princípio o efeito das ervas
para dor havia passado. Me concentrei para não esboçar dor alguma, mas escutei
um riso vindo dela, provavelmente eu fiz alguma careta de dor enquanto sentava.
- Eu me chamo Josephine Ebonhart. -
comentou enquanto servia os dois copos.
- Sou Jacob Silverhawk, futuro
capitão da maior embarcação que essa terra sem deuses irá ver - respondi em um
ar confiante e dei um longo gole na bebida.
- Ora, ora, então senhor Jacob, o que
um pirata como você faz perdido na praia? - indagou Josephine enquanto me
olhava com um ar curioso.
Congelei por alguns instantes, se ela
sabia que eu era um pirata, poderia facilmente me entregar para a guarda e
lucrar mais do que as moedas que eu estaria devendo. Instintivamente olhei para
o meu braço que estava todo enfaixado, é claro que ela saberia, afinal cuidou
do meu corpo enquanto estava desmaiado e deve ter visto a marca que os piratas
recebem quando são capturados.
- Bem... - falei com a voz rouca - a
tripulação da qual faço parte estava transportando uma mercadoria, mas ao que
tudo indica minha corda não estava bem amarrada e fui jogado do navio durante a
tempestade.
- Como é lá fora? - perguntou ela com
um olhar curioso, se debruçou sobre bar e inclinou seu corpo para perto do meu
rosto, se fosse mais alguns centímetros eu conseguia sentir sua respiração,
fiquei uns bons segundos perdido fitando seus olhos antes de responder.
Senti meu rosto esquentar, juntei um
pouco de ar e respondi.
- É fascinante o sentimento de
liberdade, viajar por todos os lugares e sentir a brisa do oceano - falei
enquanto recordava algumas boas memórias.
- Mas, vocês não pilham, saqueiam e
fazem todas essas coisas ruins? - ela saiu de trás do bar e veio na minha
direção sentando no banco que estava do meu lado.
Olhando com mais clareza notei que
tínhamos a mesma altura, e não havia percebido antes, mas Josephine também tem
uma cauda que, por sinal estava segurando o seu copo de cerveja.
- O nosso capitão deixou
extremamente claro que devemos apenas saquear pessoas ruins - esclareci depois
de dar mais um gole na bebida.
- Pensei que você fosse o capitão,
senhor Jake - disse ela com um ar travesso.
- Estou trabalhando para isso, mas um
dia eu irei ter a minha própria tripulação e você escutará histórias sobre
Jacob, o Lorde dos Mares - respondi com um ar confiante e pomposo.
- Porém, ao que tudo indica - deu um
breve gole na bebida -, agora você não passa de um pequeno meio elfo com
cabelos prateados e sem dinheiro - disse Josephine enquanto apontava para os
meus bolsos.
- Veja Josie - me ajeitei na cadeira
e comecei a gesticular - talvez possamos resolver isso de outro jeito, assim
ambos saímos ganhando e você não precisa me entregar para a guarda costeira.
Ela colocou a mão no rosto e pensou
por alguns segundos, minha garganta estava seca e eu não podia deixar minha
ansiedade transparecer. Uma onzena atrás eu estava em uma prisão e não queria
voltar de jeito nenhum, peguei o copo e bebi enquanto fitava Josephine.
- Esses dois anéis que estão no seu
colar parecem valiosos, se me dar os dois eu não falarei nada - disse ela
enquanto apontava para o meu pescoço.
Aqueles anéis eram a única coisa que
eu tinha desde que me lembro, quando fui encontrado ainda criança eles estavam
comigo, talvez fossem dos meus pais ou de um outro ente querido.
Um dos membros da tripulação, Robert,
é um especialista em joias e ele sempre analisava os tesouros para que fosse
dividido por igual. Aos seus olhos, eles não tinham um grande valor, mas para
mim era algo sentimental.
- Apenas um - respondi firme,
levantei e fiquei de frente para ela -, veja bem, eu não tenho nenhuma certeza
que você não vai me entregar quando eu passar pela porta e estiver fora da sua
vista.
- Escute - tirei um dos anéis e
coloquei na mesa -, você fica com este como garantia e quando eu encontrar o
meu grupo, volto e lhe dou uma caixa de joias. Assim eu tenho minhas coisas de
volta e você mais dinheiro do que poderia pensar.
Josephine ponderou por alguns minutos
e assentiu com a cabeça. Terminamos a garrafa de bebida e ela pegou outra,
conversamos por longas horas e descobri que aquela hospedaria era onde trabalhava
entregando bebidas e durante a noite fazia apresentações musicais.
Alguns dias se passaram e nos tornamos
mais próximos, ensinei Josie a bater carteira de pessoas avoadas e ela tentou me ensinar a dançar, claramente
sem êxito, içar velas e limpar o convés soava anos luz mais fácil do que isso.
Josephine tentou me devolver o anel e
afirmava que confiava na minha palavra, mas neguei e disse para manter ele.
Sempre que andávamos pela cidade eu
tinha vontade de dizer para ela que era a coisa mais linda que eu vi em anos.
Diversas vezes durante os dias eu pensei em convidá-la para ir embora comigo,
mas era arriscado e eu não tinha garantia nenhuma de que conseguiria mantê-la
segura, afinal eu já havia sido preso diversas vezes e perdi as contas do
quanto apanhei feito um cachorro.
Não posso mentir de que a ideia de
abandonar tudo e viver uma vida tranquila na cidade portuária não passou pela
minha cabeça, mas me mantive firme, eu tracei um objetivo e não poderia abrir
mão dele. Resolvi então que iria aproveitar ao máximo o tempo que eu tinha.
E essa foi a primeira semana com
Josie, de um mês que parece ter passado rápido demais. No fim eu parti sem me
despedir e deixando para trás um saco de moedas que juntei durante a minha
estadia. No meu pescoço? Um único anel.
Lembro de quando conheci ela, fazia
sol e havia um vento refrescante que eu jamais irei me esquecer.
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